terça-feira, 31 de agosto de 2010

'Ofélia, a Libélula' - Quarto Conto.

Descansou a pena ao lado do tinteiro. Enrolou o pergaminho devagar, selando-o com uma fita azul. Depositou-o em um baú repleto de outros rolos de pergaminho semelhantes a este. Não possuía mais fitas no cabelo, mas quem estivesse pela floresta ‘dela’ avistaria pontos azuis brilhantes, pequenas libélulas aqui e ali. O sol nascia tingindo o céu em tons de rosa e vermelho, descortinando seus raios pelo horizonte, aquecendo a Terra. Afastando as trevas...
E meses se passaram desde o encontro com Flannait. Não havia qualquer sinal de perigo pairando em torno de sua amada criança, Joseph, que seguia a vida com sua mãe viúva. Ofélia preocupava-se: estava calmo demais. Flannait era violenta, teria torturado Joseph. Quem seria o próximo a tentar matá-lo? Ofélia não sabia dizer. Nesses meses que correram, ela dedicava-se a pensar e vigiar seu protegido, mas sempre que um jovem desavisado adentrava a floresta, era dominada por seus instintos, sua punição, encantando e matando o infeliz. Ela desejava permanecer fria em todos os momentos, e não ter chance de lamentar-se. Os olhos azuis miraram o céu que clareava. Era um lindo dia.
Contudo, havia algo mais. Uma presença carregada com alguns sentimentos que ela conhecia atravessava calmamente uma trilha por dentre as árvores em direção á torre solitária. Não, não era um coração a ser roubado. Era totalmente diferente. Sem conter sua curiosidade, todas as libélulas voaram na mesma direção, indo de encontro àquela aura que seguia determinada pela estreita trilha até o coração da floresta, onde erguia-se solitária a torre de pedra. Ofélia saltou da torre pela janela, os cabelos longuíssimos esvoaçando tal como seu vestido, e caiu em pé sem fazer som algum. Correu, de maneira extremamente ágil, atrás de suas libélulas menores, enquanto a maior permanecia como a fita azul presa aos cachos negros de Ofélia.
Parou em quanto as libélulas reuniam-se para voar a sua volta.
O estranho de capuz parou também. Silêncio.
O tempo pareceu congelar. Não ouvia-se absolutamente nada. O canto de pássaros, o farfalhar das folhas, nada. Não era possível ver o rosto do invasor, que trajava um longo manto e capuz de veludo negro, cobrindo-lhe o rosto.
- Tire o capuz. – ordenou Ofélia, sem qualquer alteração na voz.
Os braços do desconhecido moveram-se, deixando as longas magas do manto escorregarem revelando mãos pálidas enfeitadas quatro anéis, dois em cada mão: um sol e uma serpente na mãe direita, uma aranha e uma lua crescente na mãe esquerda. As mãos retiraram o capuz, deixando a mostra um rosto feminino que sorria.
- Então eu a encontrei, Ofélia Libélula. – disse a mulher, em tom de satisfação.
Os cabelos dela eram de um tom alaranjado, cortado rente ao rosto, curto, com uma parte um pouco mais longa na frente, e uma franja em V. Olhos extremamente negros, carregados de mistério. Sobrancelhas bem definidas, olhar sereno, rosto belo. Ofélia estava encantada com a beleza da mulher, mas não demonstrava qualquer emoção.
- Qual teu nome? – perguntou Ofélia, protegida por suas libélulas azuis.
- Chamo-me Charllotte Cotter, minha senhora. –ajoelhou-se em total submissão – Peço que escute o que tenho a lhe dizer, Ofélia.
Que seja. Ofélia caminhou até a mulher, que permanecia sorrindo, olhando para o chão. As libélulas voaram em diferentes direções, deixando sua dona exposta. Curvou-se até Charllotte, tocando-lhe o queixo – Olhe para mim – ordenou Ofélia. Seus olhos brilharam de um intenso azul e tudo o que Charllotte viu foi o brilho pavoroso dos olhos dela, o sorriso malicioso em lábios pintados em sangue, rubros, e caninos afiados deslizarem a mostra. Escuridão, todo o resto mergulhado em trevas. Deixou-se levar, caindo no sono.
Acordou em uma cama confortável, bem arrumada com travesseiros e lençóis brancos e azuis. Sentou-se. Viu Ofélia de costas, olhando pela alta janela. O perfume de rosas era maravilhoso, contudo, não se assemelhava a nenhuma das rosas que conhecia. Deixou seus olhos passearem pelo cômodo, encontrando várias rosas azuis que cresciam em trepadeiras em algumas das paredes do ambiente. Era muito bonito. Levantou-se da cama, caminhando até Ofélia, parando a poucos passos dela. A dama na janela virou-se para a ruiva, que mantinha o sorriso nos lábios.
- Não há maldade em você para me atingir. – disse Ofélia, quebrando o silêncio – Agora conte-me o que veio fazer aqui.
Charllotte maneou a cabeça concordando.
- Minha senhora Ofélia, ofereço-lhe meus serviços em troca de vingança.
Ofélia pela primeira vez demonstrou algum sentimento à mulher, e foi surpresa.
- Por quê? – perguntou.
- Eu sei tudo sobre você, Ofélia. – disse Charllotte calmamente – Sei até mesmo as coisas que você não sabe sobre si mesma, seu passado e seu futuro, e também – sorriu – seu sobre Ériko.
Ofélia estava perplexa. Charllotte Cotter, vendo o peso de suas palavras, sentiu-se satisfeita: sabia que Ofélia a ouviria até o fim. Prosseguiu:
- A vampira que você matou, minha senhora, era minha irmã. – disse Charllotte, calmamente – Era Flannait Cotter. E agradeço o que fez, pois eu não teria conseguido. – fez uma pausa para observar a Ofélia pasma à sua frente – Vivíamos na vila mais próxima daqui, logo depois da floresta ao sul. Ambas seguíamos a Antiga Religião, que antes era comum a todos e lhes dava liberdade... – Charllotte entristeceu-se com tal pensamento e Ofélia sentiu algo familiar naquele trecho da narrativa, mas permaneceu silenciosa – Éramos ricas, minha senhora, nossos pais nos deixaram muito dinheiro e praticamente governávamos aquela aldeia e posso lhe garantir, minha senhora, nunca abusamos do poder ou tratamos de maneira ofensiva ou indigna alguém mais humilde.
‘Como muitos aldeões tornaram-se adeptos da Nova Religião, minha irmã e eu concordamos em erguer um templo da igreja em nossas terras. Em nossos domínios, todos eram livres para crer no que lhes parecia correto. Não demorou muito para que os servos de Cristo começassem a impor sua crença à força, de início apenas com ameaças sobre inferno e castigos eternos... Mas logo, minha senhora, tornaram-se violentos. As pessoas começaram a matar para decidir qual deus é mais forte, e os cristãos tornaram-se maioria. Eu e minha irmã passamos a sofrer ameaças da Igreja, que crescia e enriquecia com o dizimo cobrado dos fiéis, e através disso passou a controlar a região. Os poucos pagãos que permaneceram na vila foram todos mortos... – Charllote perdeu seu olhar em lembranças que pareciam rasgar-lhe a alma com uma afiada navalha, lentamente – As labaredas iluminavam as noites, os gritos de horror do condenado e os julgamentos dos algozes... Tudo ocorria onde antes dançávamos sob a luz da Lua, a Mãe que todos cultuavam... Mas só havia dor, dor e ódio... – Charllotte começou a chorar, cobrindo o rosto com as mãos, soluçando.
Ofélia não sabia como reagir diante da situação. Permaneceu imóvel, uma estátua de mármore, bela, alva e fria.
Charllotte conteve seus soluços e continuou:
- Flannait e eu fomos perseguidas. Uma noite, durante um ritual de proteção, invadiram nossa casa, vários conhecidos... Seus rostos contorcidos de ódio e repulsa, um desejo de nos matar! Assim que ouvi os gritos na porta da frente, segurei minha irmã e a puxei, contudo ela manteve-se imóvel, segurando seu punhal. Ela gritou para que eu fosse embora, mas não podia deixá-la. Flannait me empurrou com um chute e entendi que era esta sua escolha. Pulei o muro nos fundos de nossa casa e corri para a floresta. Flannait fora pega, torturada e condenada à fogueira para ser purificada. – Charllotte agora parecia extremamente fria – Nos espelhos d’água pude vê-la sofrer todo tipo de atrocidade, desde lesões na carne que iam de feridas cruéis à até àquelas que a penetravam e sugavam-lhe o orgulho e dignidade. Eu a vi sendo tomada pela loucura e...
- Você não fez nada? – Ofélia quebrara seu silencio pela primeira vez desde inicio da narrativa. Charllotte sentiu-se de imediato atingida por tais palavras, mas manteve a calma. Tinha motivos pra ter feito o que fez.
- Eu não podia fazer nada, minha senhora. Não tinha este direito. – respondeu Charllotte, secamente – Você era uma bruxa também, ainda o é. Cada um tem uma missão e há coisas que não podemos mudar. Entenda que nós, filhas Dela, temos o destino de todos em nossas mãos. Contudo, nunca se esqueça de que a vontade dos deuses é maior do que a nossa, portando, o destino que moldamos para cada um é, antes de tudo, a vontade Deles.
- Eu não sou filha de ninguém. – disse Ofélia, ríspida.
Charllotte riu. – Não seja tola, minha senhora. Todas as criaturas existentes, sejam de luz, trevas, de ambos ou de nenhum deles pertencem a algum deus ou deusa. Ora, - intrigou-se – sua memória deve ter sido muito afetada ou não fora bem instruída nos Mistérios! Afinal, você era a Virgem da Primavera, não era, antes dele te pegar...? – questionou.
Charllotte sabia que suas palavras pesavam e muito em Ofélia, que se esquecera da maior parte de sua vida humana. Faria com que Charllotte contasse tudo o que sabia, nem que tivesse de torturá-la.
- Se tudo baseia-se na vontade dos deuses, - começou Ofélia – todas as vidas que tirei até agora, todas as almas presas nesta floresta são também as vontades deles?
- É teu martírio, Ofélia. – disse Charllotte com pesar – Tua punição por tudo o que fizeste. O livre arbítrio que temos nos permite escolher um caminho a seguir. Você escolheu entregar seu coração á um certo alguém. Você escolheu deixar que aquele que mais a amava morresse por ti. Você escolheu deixar que um vilarejo inteiro fosse queimado à sua procura. O que ocorreu a partir de todos os seus erros –as suas punições- são sim a vontade dos deuses. Assim como as, hm, recompensas. Mas as escolhas são apenas suas, não confunda.
- Continue tua história.
- Bem, eu voltei escondida para minha casa e peguei dinheiro, roupas e meus instrumentos – Charllotte riu com tristeza – e fugi para a cidade ao norte daqui. – e apontou uma direção – Prosperei como cartomante, realizando os feitiços para quais era contratada bem como ajudando a administrar a fortuna de muitas famílias nobres que me recorriam. Dois anos se passaram desde que vi Flannait em minhas visões pela ultima vez. Sabia que ela sobrevivera de alguma forma, mas não conseguia encontrá-la: algo a mantinha oculta de minha magia. Acabei por esquecê-la, e casei-me com um nobre que seguia a Antiga Religião secretamente, Lorde Vaughan Ulva. Engravidei.
Charllotte parou de falar. O restante de sua vida não era fácil de lembrar, tão pouco de compartilhar. Inspirou fundo e continuou:
- Não cheguei a ter meu bebê. Uma noite, no sexto mês de gestação, nossa casa foi invadida. Três vampiras montadas em harpias nos pegaram despreparados e entre elas, eu vi minha irmã Flannait. Não preciso descrevê-la, você sabe como ela era. Torturaram meu marido e o mataram, obrigando-me a assistir tais atos. Flannait sorriu satisfeita para mim, dizendo que havia me libertado e que eu poderia juntar-me à Ériko, que ele era o vampiro que superaria os deuses, o mais forte... – Charllotte fitava o chão – Eu me recusei. Espancaram-me e me levaram à força. Devido a força dos golpes que recebi, sofri um aborto. O que aconteceu a partir daí não é nenhuma novidade, minha senhora. – Charllotte sentou-se na única cadeira do cômodo – Tornei-me escrava de Ériko e, como ele sabia de meu repúdio por ele, tornou-me mais uma filha das trevas. – silenciou, deixando finas presas escorregarem por seus lábios e seus globos oculares foram preenchidos de negro, mostrando sua natureza.
- Se és filha de Ériko, por que consegues andar ao sol? – questinou Ofélia, intrigada. – Sequer pude sentir que és uma vampira!
A riuva sorriu, seus olhos voltaram ao normal e suas presas se recolheram – Magia, minha senhora Ofélia. Acima de qualquer outro, minha mãe é Hécate e á Ela sempre fui fiel. Mesmo agora, nestas condições, Ela não me renegou. Continuo à praticar meus rituais, servindo-a. Ela me concede sua benção e, em casos de necessidade extrema, coloco em prática um feitiço que me protege parcialmente dos raios solares por um dia. – Charllotte mexeu em sua capa negra – Parcialmente porque não posso me expor por inteira. Só o usei duas vezes: para fugir da fortaleza de Ériko e, claro, para vir até você, minha senhora. – sorriu.
Ofélia compreendeu o que Charllotte desejava acima de qualquer coisa: vingança. Vingança pela irmã que tornara-se um monstro, pelo marido morto e pelo bebê abortado. Ériko causara tanta desgraça à Cotter quando a ela mesma. Pensou um pouco em todas as vantagens que teria com Charllotte ao seu lado. Tomou uma decisão:
- Selemos um pacto.

'O lamento da Libélula' - Segundo pergaminho.

De volta a pena, tinta e pergaminho. De volta ao meu único ouvinte. Ah, como queria ser aquela desalmada de sempre e não apenas durante meu teatro repetitivo e insano. Mas não posso. E talvez, creio eu, seja este o menor preço que devo pagar. Ver os horrores que vejo, fazer as atrocidades que faço, ser parte dessas aberrações... Enfim, agora dedico-me a proteger a criança imaculada, cuja alma mutilada posso ver cada vez que fecho meus olhos, ah...
Eu conheci Flannait. Não sei ao certo quantas décadas se passaram, mas eu a conheci. Seus olhos verdes sempre foram belos e agora, pendurados cuidadosamente em minha janela, ainda nutrem algo daquele brilho selvagem e maravilhoso da renascida. Ela, caro leitor (se é que estas palavras chegaram a alguém um dia), pôde escolher entre integrar-se à corja de protetoras e meretrizes de Ériko ou permanecer comigo. Bem, não é preciso dizer quem a atraiu mais. Lembro-me de ver Flannait, ferida e debilitada, partir com três renascidas, sem olhar para trás. Mas uma das vampiras olhou e cuspiu no chão próximo a mim, mostrando desprezo. Sem confrontar, apenas me virei e retornei a floresta. A vida, ou mesmo a mera e marginalizada existência é construída ou destruída por escolhas. E até agora, eu apenas destruí.
Eu esperava ver Ériko na noite em que buscaram a escocesa Flannait. Mas ele sabia que eu também queria a garota, e permaneceu escondido com o rabo entre as pernas. Ériko me teme. Ele apavora-se apenas em ouvir meu nome. Tem medo do monstro de criou. Ele permanece oculto por feitiços, contudo, por vezes posso vê-lo. Pouco, mas vejo. Por que prolongar por mais séculos sua existência, Ériko, se és tão covarde?
Enfim, agora me resta observar Joseph, que de nada sabe. Estranho saber que a mesma lua cheia que paira sobre minha torre paira sobre a janela de meu anjo, em um mundo tão diferente deste meu. Sem muitas das memórias de minha vida humana antes de envolver-me com Ériko, não posso sequer dar-me ao luxo de chorar pelo passado. Seguir em frente, libertar de uma vez as almas envolvidas nesta trama, que eu sem consciência de meus atos, teci cuidadosamente como uma teia. Uma teia cármica.

terça-feira, 3 de agosto de 2010

'Ofélia, a Libélula' - Terceiro Conto.

A fina garoa descia lentamente do céu enegrecido, fria, formando uma cortina acinzentada sobre a vasta floresta e a cidade longínqua. Frio. Ofélia não sentia frio, nem calor. Permanecia sentada na janela observando a garoa. A única fita em seus cabelos era aquela mais brilhante e de intenso azul: todas as outras fitas eram as libélulas azuis pequeninas que rodeavam uma casa específica naquela tal cidade distante, observando o pequeno Joseph. Assim, Ofélia podia acompanhar seu crescimento, sua personalidade, seu amor se desenvolvendo de perto, mesmo estando tão longe.
Joseph crescia conforme os anos transcorriam depressa e mutáveis para os humanos, que envelhecem a cada dia; lentos e imutáveis para Ofélia que permanece, constante, eterna. O menino, então com cinco anos, já apresentava características físicas e psicológicas referentes à sua vida passada. Ele possuía um grande fascínio por libélulas e sua família achava curioso e ao mesmo tempo encantador aqueles pequeninos dragões alados rodeando-o, como se brincassem com ele. Tinha os mesmos cabelos castanhos e ondulados, os mesmos olhos cor de mel e um rosto triangular e afeminado começava a ser desenhado. Era lindo, como um querubim deveria ser.
Ofélia sentia-se em paz ao vê-lo tão puro e alheio à sua crueldade e ao destino sombrio que o aguarda, brincando alegre na beira do lago na propriedade da família. Ela estava sempre presente. Contudo, sua busca por um coração não findou: se encontrasse um, ela e Joseph ver-se-iam livres de todo aquele pesadelo, e todas as mil almas a lamentar-se pela floresta encontrariam a paz e o descanso. Se encontrasse.
 Então teve um pressentimento. Algo aconteceria naquela mesma noite. Algo contra Joseph. Algum maldito renascido tentaria matá-lo. Ofélia deveria manter-se atenta e protegê-lo a todo custo. Assim que o sol sumisse no horizonte e a escuridão reinasse, esperaria a indesejável visita e a receberia como deveria de ser. Ofélia deitou-se sobre a cama, sem travesseiros, de costas, e seus cabelos lembravam um leque negro aberto. Fechou os olhos. Queria sonhar... Seria capaz de tal ato?
...
No início da noite, as libélulas retornaram à sua dona, obedientes. Ofélia levantou-se, deixando-se envolver pelas criaturinhas que a rodeava. Caminhou para a janela e, sem olhar ou pensar, deixou-se cair. As libélulas, pela vontade de Ofélia, sustentaram-na como se fosse feita de plumas, voando abaixo de seu corpo, levando-a em direção a cidade, enquanto ela observava as nuvens desprendendo-se umas das outras e revelando as primeiras estrelas. Queria ver a Lua.
Seus sapatinhos azuis tocaram o telhado da casa de Joseph. Espiou pela janela do quarto da criança, e viu-o dormindo tranquilamente, ao lado de vários ursos de pelúcia. Queria entrar e abraçá-lo... Ou simplesmente observar aquela paz. Era um anjo pequenino. ‘Não é justo que tenha de sofrer tanto, não é...’.
Um barulho. Alguém ou alguma coisa vinha saltando pelos telhados. Esperaria calma e impassível. O que vinha pulou a alguns poucos metros atrás de Ofélia. Virou-se. Erguia-se a sua frente uma mulher ruiva, com aquele tom alaranjado e brilhante nos cabelos. Pequenas sardas no rosto. Os olhos brilhavam verdes e ameaçadores. Lábios rubros, caninos afiados. Apertava a cintura com um espartilho vermelho e usava por baixo uma camisa branca estilo cigana, com uma calça preta e botas vermelhas com amarrações. A criatura rosnou.
- Flannait – disse Ofélia, sem demonstrar surpresa.
- Ofélia – grunhiu a recém-chegada. – Ériko não mentiu sobre sua beleza – sorriu desdenhosa – nem sobre sua tolice de ver enfrentar-me.
Ofélia não demonstrou qualquer reação. Era exatamente assim: livre de emoções. Ou pelo menos de boas emoções... As libélulas rodeavam a sua senhora, lentamente, e quando apenas uma delas aproximou-se de Flannait, a vampira num rápido movimento, cortou a criaturinha ao meio com as unhas afiadíssimas. As duas pequeninas metades caíram no chão, com seu brilho azul esvaindo-se lentamente. Ela caminhou decidida em direção a Ofélia,com o salto de suas botas batendo fortes e sonoros contra a laje.
- Não há problema algum em matá-la primeiro, sua aberração, contudo, parece-me muito mais divertido matar o garotinho enquanto você assiste. O que acha, meretriz? – Flannait riu escandalosamente, expondo caninos branquíssimos e longos. Estava cada vez mais próxima de Ofélia.
As nuvens afastaram-se da Lua. Brilhante e magnífica, testemunhava o confronto entre dois monstros em forma de belas mulheres. Viu quando a alta ruiva parou de caminhar, a alguns centímetros de sua adversária, fitando-a com olhos famintos.
- Não dirá nada, agora que esta prestes a morrer? – provocou a vampira.
- Morrer? – perguntou Ofélia, sem alterar sua expressão – Apenas vivos podem morrer. Eu não estou viva. Tão pouco estou morta. Eu apenas existo e existo para proteger a criança até que tenha idade para despertar e decidir o que será de mim. –seus olhos brilharam azuis em resposta ao verde que cintilava nos olhos da vampira – Se minha existência findará ou não, não cabe a você decidir.
Flannait grunhiu alto e ameaçadoramente. Com agilidade sobrenatural, ela avançou sobre Ofélia, fazendo-a cair do alto da laje e bater de costas com o gramado no quintal da casa. Mantendo-se sobre a adversária, causou-lhe profundos cortes no peito e pescoço com as unhas, por fim, ergueu-a e lançou-a, fazendo-a bater contra o tronco de uma árvore.Ofélia caiu com o rosto no chão, enquanto Flannait ria satisfeita.
As luzes da casa começaram a acender-se.
- Sei que agüenta bem mais que isso, Ofélia! – disse a vampira – Trarei seu protegido para destruí-lo na sua frente... Posso até arrancar-lhe o coração, já que é só o que você quer.
A enorme porta da frente abriu-se, revelando um homem de certa idade e boa aparência, apontando uma espingarda para a mulher de cabelos sangrentos que se virou para ele. Um jovem de uns quatorze anos segurava um pedaço grande de madeira. Assustado, fitando os dois olhos de verde sobrenatural da mulher, atirou. Ágil, Flannait avançou sobre o mais velho, e com um único e certeiro golpe, cortou-lhe a garganta com as unhas, deixando o liquido precioso escorrer. O mais jovem não tempo sequer de gritar, pois no segundo seguinte, a vampira estava agarrada ao seu pescoço, sugando-lhe a vida. Quando sentiu-se satisfeita, o garota ainda se debatia, o que a incomodou. Quebrou-lhe o pescoço com as mãos.
Mas distraída como estava, a renascida não viu o que acontecia a alguns metros atrás de si. Ofélia levantava-se, assemelhando-se a um fantasma, branca, sem expressão, ensangüentada. Tocou com a palma da mão esquerda a árvores atrás de si. Lentamente, as raízes do carvalho saíram do chão e rastejaram como serpentes silenciosas até Flannait, que se dirigia para o interior da casa...
Uma mulher gritou de uma das altas janelas na parte superior da casa, diante da cena que se desenrolava. Dois dos ramos das raízes prenderam os tornozelos da vampira, imobilizando-a. Outros três atravessaram-lhe as costas, fazendo-a gritar e cuspir sangue. Enroscando-se ainda mais em seu corpo ferido, as raízes puxaram-na para trás, mantendo-a presa de costas para o chão, imóvel. Todo o sangue que ela havia ingerido esvaia-se. Flannait desesperou-se, tentando inutilmente libertar-se. Oféia caminha a passos lentos de seu vitima. Um sorriso sádico deslizou em seus lábios rubros manchados com seu próprio sangue. Queria divertir-se.
Ajoelhou-se ao lado da vampira. A criatura grunhia de ódio e dor, expondo os caninos como ameaça. Ofélia olhou-a nos olhos: aquele verde era tão fascinante quanto seu azul.
- Gosto dos seus olhos. – disse Ofélia. Outra raiz rastejou até a renascida e prendou sua cabeça firmemente contra o chão. Flannait estava apavorada. As libélulas azuis voaram sobre as duas, acompanhando o próximo ato de sua senhora. Suas mãos acariciaram o rosto da vampira e seus dedos pousaram próximos aos olhos dela. Próximos demais. Devagar, suas unhas perfuraram-lhe logo abaixo do globo ocular, penetrando, encaixando-se e agarrando-o. Flannait gritou, um grito horroroso e assustador que cortou a noite. Ofélia então, puxou-os para fora, como faria a um coração. Cortou o nervo óptico com uma de suas unhas. A renascida gritou ainda mais alto, o que fez com que Ofélia lhe desferisse um tapa no rosto.
-Cale-se! –ordenou – Não quero que Joseph ouça nem veja isto!
A vampira derrotada e humilhada choramingava, com as pálpebras fundas onde deveria haver duas belas e ameaçadoras esmeraldas brilhantes. Ofélia admirou os dois globos oculares em sua mão e então os guardou em um pequeno e discreto bolso do vestido, como se fossem dois brinquedinhos que achara e queria certificar-se de que não os perderia. Levantou-se.
A mulher que antes gritara da janela, correra para esconder-se e, provavelmente, certificar-se onde estaria seu filho de cinco anos. Ofélia ordenou, sem nada dizer, que cinco libélulas permanecessem de vigília, como sempre. As outras, a levariam para a casa. Lançou um ultimo olhar para Flannait...
- Não quero morrer, não quero... – e chorava.
- Você já está morta, ignorante. – disse-lhe Ofélia secamente.
Joseph perdera seu pai e um empregado da família. Sua mãe ainda estava viva. Ele próprio estava vivo e, Ofélia esperava, alheio a real causa dessas mortes. Contudo, ela tinha certeza de que tentariam novamente. Ériko estava determinado a destruir seus planos, ela tinha certeza. Ótimo. Que ele próprio a encontrasse e ela não se daria ao trabalho de caçá-lo. Se o matasse, poderia recuperar seu coração. Levou uma das mãos ao peito ao imaginar a possibilidade. As libélulas ergueram-na, voando abaixo de seu corpo, rumo ao céu que lentamente clareava. Jogou os braços para trás, livre, sentindo o vento, admirando o contraste de cores que a aurora trazia. Quanto a Flannait, o sol faria o resto.
Queria lavar-se. O sangue seco começou a incomodá-la.

segunda-feira, 26 de julho de 2010

'Ofélia, a Libélula' - Segundo Conto.

Ofélia deixou cair o que restou do coração da última vítima. Estava nua e suja de sangue, fitando o nada com olhos vazios. Jogou-se sobre a cama, fechando os olhos, e permaneceu imóvel. Sentia sua cicatriz vez ou outra pulsar e expelir pequenas quantidades de sangue, tentando livrar-se de qualquer vestígio do coração inadequado. A sensação do líquido rubro e pegajoso na pele passou a incomodá-la. Queria lavar-se. E da maneira como estava, suja e nua, desceu as escadas de pedra, pisando em flores e folhas, e alcançou a relva úmida e a noite enluarada.
Olhou, admirada, a lua cheia que dominava os céus, reinando soberana noite adentro. Quantas vezes, em uma vida distante e feliz, já não dançara sob os raios desta mesma lua? Lembrou-se da sensação mística de deixar-se guiar pelo som da harpa e de tambores. Novamente fechou os olhos, tentando recordar-se ainda mais da vida que tivera... E então quase podia sentir a coroa de flores pequeninas enfeitando sua cabeça e o belo vestido verde a cobrir seu corpo; os trajes da Noiva da Primavera. Viu camponeses alegres sorrindo e acenando-lhe, pois ela, a Noiva, traria a todos uma boa colheita... Qual era o nome da Deusa que adorara?
Mas que importância algo assim teria agora?
Ofélia seguiu por dentre as árvores, ouvindo os animais e sentindo a presença de cada um. Viu algumas das almas perdidas chorando, mas não deu importância; prosseguiu dançando indiferente à dor daqueles infelizes. Chegou então a um lago no qual a lua refletia. Folhas e flores das árvores decoravam a superfície aqui e ali, bem como algumas pedras. O coaxar de sapos a fez esboçar um sorriso satisfeito. Um leve aceno de cabeça, quase imperceptível, fez com que as libélulas a sua volta se dispersassem, voando em direções diferentes. Caminhou até a margem e entrou nas águas geladas, até os quadris e então mergulhou. Emergiu e submergiu diversas vezes, levou seu corpo removendo o sangue com as mãos. Quando sentiu-se limpa, retornou a margem e sentou-se sobre a grama, com o olhar perdido sobre a superfície iluminada da água.
Foi quando ouviu, não com os ouvidos, mas com a mente, o grito de uma mulher; O grito de uma mulher em trabalho de parto. Olhou a libélula maior do outro lado do lago, que pareceu compreender. Então a estranha criatura voou, rápido demais para uma libélula comum, indo até a mulher que tornava-se mãe. Ofélia via através da libélula o que acontecia: Dentro do pequeno quarto, uma mulher sangrava e gritava na cama, enquanto outras corriam com baldes de água quente e lençóis, alguns limpos, outros ensopados de sangue. Foi quando os gritos cessaram e o choro de um recém nascido invadiu o cômodo. A mãe da criança, suada, respirou aliviada por livrar-se da dor, olhando satisfeita o bebê que a parteira lhe mostrava. “Mais um menino, senhora” disse a parteira, “Que nome dará a ele?”. A mãe, cansada pelo parto, murmurou “Joseph” e estendeu os braços para aconchegar seu segundo filho e dar-lhe de mamar.
Muito distante dali, Ofélia permanecia imóvel, extremamente surpresa, em um misto de euforia e pavor. Então ele reencarnou. Aquela pequena criança era o homem que séculos antes morreu tentando protegê-la. Aquele bebê não fazia idéia de quão maculada sua alma estava por culpa de Ofélia... Ele sequer a conhecia. Sentiu uma enorme agonia ao pensar que aquela criança que acabara de nascer, pura, inocente das maldades e da sujeira desse mundo, tivesse de sofrer tanto por um erro tão antigo. Por seu carma. “Por minha culpa...”.
Era impossível impedir. Ofélia decidiu observar a criança crescer e teve a certeza de que algo terrível o traria até ela; apenas não sabia o que. E quando ele viesse, dar-lhe-ia a chance de vingar-se por todo o mal que ela lhe causara ou de perdoá-la. Esperaria mais vinte, vinte e cinco anos, o que fosse, afinal, já esperara dois séculos. Ela, que traçara o destino dos que caiam em sua teia, deixaria que no tempo certo, seu destino fosse traçado por outra pessoa.
Por aquele que agora chama-se Joseph.

sexta-feira, 23 de julho de 2010

'O lamento da Libélula' - Primeiro pergaminho.

Não há um coração pulsante, espalhando vida em meu peito. Toca. Sente? É fundo, é vázio. Veja a cicatriz grosseira maculando a palidez de minha pele. Não há um coração que possa sentir...
Então como posso estar a me lamentar, sangrando palavras em um velho pergaminho? Que parte de um ser vivente pode sentir amor ou tristeza se não o coração
Um ser vivente... ?
Como posso estar viva se não possuo um coração? O que eu me tornei?! O sangue de jovens rapazes sacia a sede que arde em meu estomago, mas não sou eu uma asraelita, uma Renascida. A magia flue através de mim, como flue em sábias bruxas, porém, não sou bruxa. Eu pertenço a esta floresta que me acolhe, mas mesmo aqui eu não encontro algo para adequar-se ao que sou. O sol não me afeta, não põe fim à minha triste existência. Não há lenda que ensine a destruir-me. Como interromper isto que custo a chamar de vida?
Eu não findo. Não tenho o ciclo perfeito que rege todas as maravilhas vivas: nascer, crescer, reproduzir, envelhecer, morrer. Quem mais além de mim é assim? Nada doi mais do que a dor da solidão. Da existência continua sem descanço e reencarnação. Sem respostas. Sem amor.
O amor...
O amor tornou-me o que sou hoje. Algo que prolonga sua permanência neste plano sem ter escolha. Tantos morreram pela mão que segura a pena e desliza a tinta em palavras que mal sabe se chegaram a alguém. O que sou eu, que sinto a dor de um anorme vazio no peito, a dor de não possuir um coração, e não padeço por isto?
A teia criada por eu mesma enroscou-se em meus membros, enrolou-se em meu pescoço e estrangula-me. E cada vez mais, as almas de inocêntes ferem-se para sempre pelo meu egoísmo. O som melancolico de mil vozes a chorar e clamar misericórdia é música para mim. E esse som vem de todas as almas aprisionadas em minha teia, perdidas na floresta, lamentando a dor pela perda de seus corações.
Ah, e eu vejo outro viajante... Veja, cabelos negros em lindas ondas tais como os do Renascido a quem amei. Eu o desejo. Minha libélula, meu animalzinho azul brilhante voou e voa até ele. Outro infeliz. Mas por que não? Este pode servir, este coração... Eu apenas preciso manipulá-lo ainda mais que aos outros, fazer com que sinta mais amor, mais paixão, mais desespero por mim. O pontinho azul sumiu entre as árvores. Cascos de cavalo aproximam-se de minha torre. Hora de recomeçar novamente.
Meu teatro macabro inicia seu igual e próximo ato. Igual ao anterior, igual ao próximo. Continuo, infindável.

'Ofélia, a Libélula' - Primeiro Conto.

   Os cabelos dela são de um negro profundo. Tem cachos tão belos e definidos a cascatear pelas costas. Cachos menores emolduram seu rosto delicado e branco, como boneca de porcelana, e lábios vermelhos, tão rubros como se permanecessem banhados em sangue. Seus olhos possuem sempre uma expressão distante, até vazia. E possuem um tom de azul nunca visto, lembrando duas pequenas e polidas sodalitas sobre mármore branco. Seus olhos são decorados por longos cílios negros e sobrancelhas marcantes. Ela não é alta, não tem mais de um metro e sessenta. Seu corpo todo parece de gesso ou porcelana, devido sua delicadeza e palidez. Seus seios não são como os de mulher feita, mas sim como os de uma jovem de dezesseis ou dezessete anos. O que a macula é uma horrenda cicatriz em seu peito, parcialmente encoberta pelo vestido; Uma cicatriz que parece recente, que doía como tal, mas era muito antiga. Toda a sua aparência é assim, jovem. Flor da idade. Veste-se sempre de azul. Um longo vestido azul, com fitas e babados, preso apenas logo abaixo do busto. O decote em 'u' era decorado por babadinhos, bem como a barra e a manga do vestido. Uma sapatilha azul. E muitas fitas azuis presas ao cabelo sempre solto.
   E assim termino de pintar minha Ofélia, a Libelula, como faria um pintor ou poeta apaixonado.
   Vive sempre sozinha, na torre alta de pedras frias, por onde cresciam trepadas rosas azuis...  em  nenhum outro lugar há estas rosas, apenas ali. Nunca saia da torre na colina descampada no meio da floresta. Ali em seu quarto todo decorado de renda e leves tecidos azuis, ela permanece a se lamentar e a odiar...
   Ofélia sabe que fora enganada, amaldiçoada, traída. Ah, tristeza... Por que ele a machucou daquele modo? Ela não tem mais asas, não era mais libélula para voar com elas... Agora sequer um coração possui. Não se apaixonaria mais e nem deixaria nenhum sentimento tomar conta dela. Era vazia. Por vezes, até a tristeza a abandonava. Ela nada sentia.
   Por vezes, algum desavisado passava por ali. Por vezes a maioria sequer via a torre. Mas Ofélia vê a todos. Quando trava-se de belos e jovens rapazes, Ofélia lembrava-se de seu amado e de sua eterna beleza. Lembrava-se daquele a quem entregou seu coração virgem, que o tirou com suas próprias mãozinhas e deu a ele sem remorso, sem arrependimento. Então, Ofélia desejava ter o belo viajante que passava ali, e o pegava. Ela o atraía para sua teia e era inevitável... Não importa se o rapaz era casado, se não amava ou se já amava alguém, eles sempre vinham quando Ofélia os chamava, sempre. E a amavam. Era quase como um ritual a se repetir sempre. A libélula azul voava para o escolhido e o circundava. Era impossível não encantar-se com sua beleza. O rapaz seguia o animalzinho, subindo pela colina e deparando-se com a torre alta. Espantavam-se com as rosas azuis, jamais vistas, e com seu perfume magnífico, único. A libélula subia voando lentamente, e o jovem a seguia, curioso, esquecia-se de qualquer compromisso ou obrigação. Subia os degraus de pedra, onde folhas e flores caiadas decoravam o local com ar abandonado. As mãos empurravam a porta de madeira bruta, revelando o quarto onde reside a dor e a solidão, a tristeza em sua mais bela forma. Pois quando o jovem infeliz via Ofélia e aspirava o perfume que ela exalava, era dominado por ela. Sentia-se completamente apaixonado, sentia que a amava... Sentimentos que Ofélia manipulava magistralmente e assim abalava e ganhava o coração do viajem. A libélula voa e junta-se aos outros lacinhos que enfeitam o cabelo de Ofélia, tornando-se novamente um deles, o mais brilhante e azul. Os olhos tristes e os braços estendidos ao viajante, clamando compaixão, desejando carinho, e o rapaz hipnotizado acalentava-a nos braços, desejando sugar toda a tristeza em seu coração...
  Mas Ofélia não possuí um coração.
  E logo o carinho torna-se desejo sexual. Ofélia age como boneca, perde a tristeza no olhar e adota olhos vazios, distantes, indiferentes. O jovem tira seu vestido revelando sua palidez imaculada, pura... A horrivel cicatriz no peito de Ofélia é ignorada, não causa repulsa a quem é dominado pelo desejo carnal. Ela deixa que o rapaz a tocasse e a acariciasse, sem retribuir, sem demonstrar qualquer sentimento ou prazer; Sem existir no momento. Quando ele se satisfazia e largava, Ofélia voltava a si. Erguia-se sobre o rapaz, extasiado de prazer. Ele esperava mais, queria mais... Infeliz. Não passava de outra marionete, outra alma aprizionada na teia cármica de Ofélia...Suas mãozinhas com unhas longas e finas deslizaram no peito do jovem e a direita deteve-se no lado esquerdo, sobre a pulsação. O coração. Ofélia então olhava-o nos olhos, e a fala saía dos lábios dele, 'eu te amo', como ela precisava ouvir antes de seu ato final. Lentamente suas unhas perfuraram a pele e a carne do jovem, penetrando fundo, até seu objetivo. O rapaz assustado, gritava e tentava se libertar, mas estava preso a cama; Algo o segurava. Os dedinhos de Ofélia então encontram: o coação, pulsante, vivo! Agarra-o. Puxa-o devagar até arrancá-lo do peito. É preciso ter cuidado. É preciso mater o rapaz vivo. Restam alguns segundos ao jovem, padecendo em dolorosa agonia, tendo sua carne penetrada e suas arterias rompidas. O coração pulsa na mão de Ofélia. Ela o encosta no proprio peito e sua cicatriz vai se abrindo, engolindo o coração, tomando-o para sí.... Este não serve! O peito abre-se novamente, expelindo o coração, recusando-o, rejeitando-o.
  Um choro dolorido. Ofélia chora e espreme aquele coração ensanguentado nos dedos, furiosa, incompleta, triste. Da janela, raízes de árvores entram no aposento, agarrando o corpo inerte e sem vida do rapaz delicadamente, enrolando-o, levando-o para fora, sendo engolido pela grama, junto a outros tantos corpos de rapazes que padeceram sobre o mesmo fim. Os caninos afiadissímos de Ofélia, finos e brancos, perfuraram o coração, sugando o elixir da vida. Se um coração servisse, deixaria de ser o que é... Mas o que é Ofélia?
 O coração não servia, e não serviria nenhum outro que ela tomasse a força, repleto de sentimentos falsos implantados por ela mesma. Nenhum serviria até alguém que realmente a amasse lhe desse o proprio coração, por sua propria vontade; Exatamente como fizera Ofélia, séculos antes, ao monstro que a tornour um monstro pior. Mas quem seria capaz de tamanha façanha? Quem amaria a tal ponto? E quem amaria      Ofélia, sendo o que é, fazendo o que faz?
 Ah, a amargura, o arrependimento... Havia alguém. Alguém que morrera séculos antes, que findou por amor à Ofélia, tentando alertá-la e protegê-la daquele maldito Renascido. Morto. Ah, Ofélia chorava sua morte, lamentava mais do que perda do proprio coração. Pois ele possuía o amor que ela jamais sentira, e ele lhe daria seu coração. Mas por seu egoísmo e cegueira, Ofélia negou-se a acreditar, e o viu morrer quando já era tarde de mais para fugir.
 O ritual seguia-se diariamente, roubando corações e aumentando seu carma, aprisionando na floresta as almas que viam-se vitimas da mentira, da dor, odiando seu algoz e lamentando por seu protetor... Mas Ofélia sabia que o Renascido permanecia existindo em algum lugar, e desejava destruí-lo, arrastá-lo aos raios de Rá, o Deus Sol, que feriam apenas à ele, e vê-lo queimar. Desejava recuperar seu coração... Ou ter outro, dado à ela com amor. Ofélia também sabia que seu anjo amado reencarnaria em algum lugar, em algum momento, e ela o aguardaria para pedir-lhe perdão, por toda dor que ele sentira, e por todos os fios cármicos que ela enrolara em sua alma.
  E a libélula azul brilhante permanecia voar com seu balanço triste e desiludido, até o dia em que pudesse voar alto e livrar-se de tudo aquilo.