terça-feira, 31 de agosto de 2010

'Ofélia, a Libélula' - Quarto Conto.

Descansou a pena ao lado do tinteiro. Enrolou o pergaminho devagar, selando-o com uma fita azul. Depositou-o em um baú repleto de outros rolos de pergaminho semelhantes a este. Não possuía mais fitas no cabelo, mas quem estivesse pela floresta ‘dela’ avistaria pontos azuis brilhantes, pequenas libélulas aqui e ali. O sol nascia tingindo o céu em tons de rosa e vermelho, descortinando seus raios pelo horizonte, aquecendo a Terra. Afastando as trevas...
E meses se passaram desde o encontro com Flannait. Não havia qualquer sinal de perigo pairando em torno de sua amada criança, Joseph, que seguia a vida com sua mãe viúva. Ofélia preocupava-se: estava calmo demais. Flannait era violenta, teria torturado Joseph. Quem seria o próximo a tentar matá-lo? Ofélia não sabia dizer. Nesses meses que correram, ela dedicava-se a pensar e vigiar seu protegido, mas sempre que um jovem desavisado adentrava a floresta, era dominada por seus instintos, sua punição, encantando e matando o infeliz. Ela desejava permanecer fria em todos os momentos, e não ter chance de lamentar-se. Os olhos azuis miraram o céu que clareava. Era um lindo dia.
Contudo, havia algo mais. Uma presença carregada com alguns sentimentos que ela conhecia atravessava calmamente uma trilha por dentre as árvores em direção á torre solitária. Não, não era um coração a ser roubado. Era totalmente diferente. Sem conter sua curiosidade, todas as libélulas voaram na mesma direção, indo de encontro àquela aura que seguia determinada pela estreita trilha até o coração da floresta, onde erguia-se solitária a torre de pedra. Ofélia saltou da torre pela janela, os cabelos longuíssimos esvoaçando tal como seu vestido, e caiu em pé sem fazer som algum. Correu, de maneira extremamente ágil, atrás de suas libélulas menores, enquanto a maior permanecia como a fita azul presa aos cachos negros de Ofélia.
Parou em quanto as libélulas reuniam-se para voar a sua volta.
O estranho de capuz parou também. Silêncio.
O tempo pareceu congelar. Não ouvia-se absolutamente nada. O canto de pássaros, o farfalhar das folhas, nada. Não era possível ver o rosto do invasor, que trajava um longo manto e capuz de veludo negro, cobrindo-lhe o rosto.
- Tire o capuz. – ordenou Ofélia, sem qualquer alteração na voz.
Os braços do desconhecido moveram-se, deixando as longas magas do manto escorregarem revelando mãos pálidas enfeitadas quatro anéis, dois em cada mão: um sol e uma serpente na mãe direita, uma aranha e uma lua crescente na mãe esquerda. As mãos retiraram o capuz, deixando a mostra um rosto feminino que sorria.
- Então eu a encontrei, Ofélia Libélula. – disse a mulher, em tom de satisfação.
Os cabelos dela eram de um tom alaranjado, cortado rente ao rosto, curto, com uma parte um pouco mais longa na frente, e uma franja em V. Olhos extremamente negros, carregados de mistério. Sobrancelhas bem definidas, olhar sereno, rosto belo. Ofélia estava encantada com a beleza da mulher, mas não demonstrava qualquer emoção.
- Qual teu nome? – perguntou Ofélia, protegida por suas libélulas azuis.
- Chamo-me Charllotte Cotter, minha senhora. –ajoelhou-se em total submissão – Peço que escute o que tenho a lhe dizer, Ofélia.
Que seja. Ofélia caminhou até a mulher, que permanecia sorrindo, olhando para o chão. As libélulas voaram em diferentes direções, deixando sua dona exposta. Curvou-se até Charllotte, tocando-lhe o queixo – Olhe para mim – ordenou Ofélia. Seus olhos brilharam de um intenso azul e tudo o que Charllotte viu foi o brilho pavoroso dos olhos dela, o sorriso malicioso em lábios pintados em sangue, rubros, e caninos afiados deslizarem a mostra. Escuridão, todo o resto mergulhado em trevas. Deixou-se levar, caindo no sono.
Acordou em uma cama confortável, bem arrumada com travesseiros e lençóis brancos e azuis. Sentou-se. Viu Ofélia de costas, olhando pela alta janela. O perfume de rosas era maravilhoso, contudo, não se assemelhava a nenhuma das rosas que conhecia. Deixou seus olhos passearem pelo cômodo, encontrando várias rosas azuis que cresciam em trepadeiras em algumas das paredes do ambiente. Era muito bonito. Levantou-se da cama, caminhando até Ofélia, parando a poucos passos dela. A dama na janela virou-se para a ruiva, que mantinha o sorriso nos lábios.
- Não há maldade em você para me atingir. – disse Ofélia, quebrando o silêncio – Agora conte-me o que veio fazer aqui.
Charllotte maneou a cabeça concordando.
- Minha senhora Ofélia, ofereço-lhe meus serviços em troca de vingança.
Ofélia pela primeira vez demonstrou algum sentimento à mulher, e foi surpresa.
- Por quê? – perguntou.
- Eu sei tudo sobre você, Ofélia. – disse Charllotte calmamente – Sei até mesmo as coisas que você não sabe sobre si mesma, seu passado e seu futuro, e também – sorriu – seu sobre Ériko.
Ofélia estava perplexa. Charllotte Cotter, vendo o peso de suas palavras, sentiu-se satisfeita: sabia que Ofélia a ouviria até o fim. Prosseguiu:
- A vampira que você matou, minha senhora, era minha irmã. – disse Charllotte, calmamente – Era Flannait Cotter. E agradeço o que fez, pois eu não teria conseguido. – fez uma pausa para observar a Ofélia pasma à sua frente – Vivíamos na vila mais próxima daqui, logo depois da floresta ao sul. Ambas seguíamos a Antiga Religião, que antes era comum a todos e lhes dava liberdade... – Charllotte entristeceu-se com tal pensamento e Ofélia sentiu algo familiar naquele trecho da narrativa, mas permaneceu silenciosa – Éramos ricas, minha senhora, nossos pais nos deixaram muito dinheiro e praticamente governávamos aquela aldeia e posso lhe garantir, minha senhora, nunca abusamos do poder ou tratamos de maneira ofensiva ou indigna alguém mais humilde.
‘Como muitos aldeões tornaram-se adeptos da Nova Religião, minha irmã e eu concordamos em erguer um templo da igreja em nossas terras. Em nossos domínios, todos eram livres para crer no que lhes parecia correto. Não demorou muito para que os servos de Cristo começassem a impor sua crença à força, de início apenas com ameaças sobre inferno e castigos eternos... Mas logo, minha senhora, tornaram-se violentos. As pessoas começaram a matar para decidir qual deus é mais forte, e os cristãos tornaram-se maioria. Eu e minha irmã passamos a sofrer ameaças da Igreja, que crescia e enriquecia com o dizimo cobrado dos fiéis, e através disso passou a controlar a região. Os poucos pagãos que permaneceram na vila foram todos mortos... – Charllote perdeu seu olhar em lembranças que pareciam rasgar-lhe a alma com uma afiada navalha, lentamente – As labaredas iluminavam as noites, os gritos de horror do condenado e os julgamentos dos algozes... Tudo ocorria onde antes dançávamos sob a luz da Lua, a Mãe que todos cultuavam... Mas só havia dor, dor e ódio... – Charllotte começou a chorar, cobrindo o rosto com as mãos, soluçando.
Ofélia não sabia como reagir diante da situação. Permaneceu imóvel, uma estátua de mármore, bela, alva e fria.
Charllotte conteve seus soluços e continuou:
- Flannait e eu fomos perseguidas. Uma noite, durante um ritual de proteção, invadiram nossa casa, vários conhecidos... Seus rostos contorcidos de ódio e repulsa, um desejo de nos matar! Assim que ouvi os gritos na porta da frente, segurei minha irmã e a puxei, contudo ela manteve-se imóvel, segurando seu punhal. Ela gritou para que eu fosse embora, mas não podia deixá-la. Flannait me empurrou com um chute e entendi que era esta sua escolha. Pulei o muro nos fundos de nossa casa e corri para a floresta. Flannait fora pega, torturada e condenada à fogueira para ser purificada. – Charllotte agora parecia extremamente fria – Nos espelhos d’água pude vê-la sofrer todo tipo de atrocidade, desde lesões na carne que iam de feridas cruéis à até àquelas que a penetravam e sugavam-lhe o orgulho e dignidade. Eu a vi sendo tomada pela loucura e...
- Você não fez nada? – Ofélia quebrara seu silencio pela primeira vez desde inicio da narrativa. Charllotte sentiu-se de imediato atingida por tais palavras, mas manteve a calma. Tinha motivos pra ter feito o que fez.
- Eu não podia fazer nada, minha senhora. Não tinha este direito. – respondeu Charllotte, secamente – Você era uma bruxa também, ainda o é. Cada um tem uma missão e há coisas que não podemos mudar. Entenda que nós, filhas Dela, temos o destino de todos em nossas mãos. Contudo, nunca se esqueça de que a vontade dos deuses é maior do que a nossa, portando, o destino que moldamos para cada um é, antes de tudo, a vontade Deles.
- Eu não sou filha de ninguém. – disse Ofélia, ríspida.
Charllotte riu. – Não seja tola, minha senhora. Todas as criaturas existentes, sejam de luz, trevas, de ambos ou de nenhum deles pertencem a algum deus ou deusa. Ora, - intrigou-se – sua memória deve ter sido muito afetada ou não fora bem instruída nos Mistérios! Afinal, você era a Virgem da Primavera, não era, antes dele te pegar...? – questionou.
Charllotte sabia que suas palavras pesavam e muito em Ofélia, que se esquecera da maior parte de sua vida humana. Faria com que Charllotte contasse tudo o que sabia, nem que tivesse de torturá-la.
- Se tudo baseia-se na vontade dos deuses, - começou Ofélia – todas as vidas que tirei até agora, todas as almas presas nesta floresta são também as vontades deles?
- É teu martírio, Ofélia. – disse Charllotte com pesar – Tua punição por tudo o que fizeste. O livre arbítrio que temos nos permite escolher um caminho a seguir. Você escolheu entregar seu coração á um certo alguém. Você escolheu deixar que aquele que mais a amava morresse por ti. Você escolheu deixar que um vilarejo inteiro fosse queimado à sua procura. O que ocorreu a partir de todos os seus erros –as suas punições- são sim a vontade dos deuses. Assim como as, hm, recompensas. Mas as escolhas são apenas suas, não confunda.
- Continue tua história.
- Bem, eu voltei escondida para minha casa e peguei dinheiro, roupas e meus instrumentos – Charllotte riu com tristeza – e fugi para a cidade ao norte daqui. – e apontou uma direção – Prosperei como cartomante, realizando os feitiços para quais era contratada bem como ajudando a administrar a fortuna de muitas famílias nobres que me recorriam. Dois anos se passaram desde que vi Flannait em minhas visões pela ultima vez. Sabia que ela sobrevivera de alguma forma, mas não conseguia encontrá-la: algo a mantinha oculta de minha magia. Acabei por esquecê-la, e casei-me com um nobre que seguia a Antiga Religião secretamente, Lorde Vaughan Ulva. Engravidei.
Charllotte parou de falar. O restante de sua vida não era fácil de lembrar, tão pouco de compartilhar. Inspirou fundo e continuou:
- Não cheguei a ter meu bebê. Uma noite, no sexto mês de gestação, nossa casa foi invadida. Três vampiras montadas em harpias nos pegaram despreparados e entre elas, eu vi minha irmã Flannait. Não preciso descrevê-la, você sabe como ela era. Torturaram meu marido e o mataram, obrigando-me a assistir tais atos. Flannait sorriu satisfeita para mim, dizendo que havia me libertado e que eu poderia juntar-me à Ériko, que ele era o vampiro que superaria os deuses, o mais forte... – Charllotte fitava o chão – Eu me recusei. Espancaram-me e me levaram à força. Devido a força dos golpes que recebi, sofri um aborto. O que aconteceu a partir daí não é nenhuma novidade, minha senhora. – Charllotte sentou-se na única cadeira do cômodo – Tornei-me escrava de Ériko e, como ele sabia de meu repúdio por ele, tornou-me mais uma filha das trevas. – silenciou, deixando finas presas escorregarem por seus lábios e seus globos oculares foram preenchidos de negro, mostrando sua natureza.
- Se és filha de Ériko, por que consegues andar ao sol? – questinou Ofélia, intrigada. – Sequer pude sentir que és uma vampira!
A riuva sorriu, seus olhos voltaram ao normal e suas presas se recolheram – Magia, minha senhora Ofélia. Acima de qualquer outro, minha mãe é Hécate e á Ela sempre fui fiel. Mesmo agora, nestas condições, Ela não me renegou. Continuo à praticar meus rituais, servindo-a. Ela me concede sua benção e, em casos de necessidade extrema, coloco em prática um feitiço que me protege parcialmente dos raios solares por um dia. – Charllotte mexeu em sua capa negra – Parcialmente porque não posso me expor por inteira. Só o usei duas vezes: para fugir da fortaleza de Ériko e, claro, para vir até você, minha senhora. – sorriu.
Ofélia compreendeu o que Charllotte desejava acima de qualquer coisa: vingança. Vingança pela irmã que tornara-se um monstro, pelo marido morto e pelo bebê abortado. Ériko causara tanta desgraça à Cotter quando a ela mesma. Pensou um pouco em todas as vantagens que teria com Charllotte ao seu lado. Tomou uma decisão:
- Selemos um pacto.

Um comentário:

  1. "Acima de qualquer outro, minha mãe é Hécate e á Ela sempre fui fiel."

    - Achei perfeita sua escrita!
    Principalmente quando fala sobre Hécate!
    Minha Divindade protetora.
    Muito bom seu blog.

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