terça-feira, 3 de agosto de 2010

'Ofélia, a Libélula' - Terceiro Conto.

A fina garoa descia lentamente do céu enegrecido, fria, formando uma cortina acinzentada sobre a vasta floresta e a cidade longínqua. Frio. Ofélia não sentia frio, nem calor. Permanecia sentada na janela observando a garoa. A única fita em seus cabelos era aquela mais brilhante e de intenso azul: todas as outras fitas eram as libélulas azuis pequeninas que rodeavam uma casa específica naquela tal cidade distante, observando o pequeno Joseph. Assim, Ofélia podia acompanhar seu crescimento, sua personalidade, seu amor se desenvolvendo de perto, mesmo estando tão longe.
Joseph crescia conforme os anos transcorriam depressa e mutáveis para os humanos, que envelhecem a cada dia; lentos e imutáveis para Ofélia que permanece, constante, eterna. O menino, então com cinco anos, já apresentava características físicas e psicológicas referentes à sua vida passada. Ele possuía um grande fascínio por libélulas e sua família achava curioso e ao mesmo tempo encantador aqueles pequeninos dragões alados rodeando-o, como se brincassem com ele. Tinha os mesmos cabelos castanhos e ondulados, os mesmos olhos cor de mel e um rosto triangular e afeminado começava a ser desenhado. Era lindo, como um querubim deveria ser.
Ofélia sentia-se em paz ao vê-lo tão puro e alheio à sua crueldade e ao destino sombrio que o aguarda, brincando alegre na beira do lago na propriedade da família. Ela estava sempre presente. Contudo, sua busca por um coração não findou: se encontrasse um, ela e Joseph ver-se-iam livres de todo aquele pesadelo, e todas as mil almas a lamentar-se pela floresta encontrariam a paz e o descanso. Se encontrasse.
 Então teve um pressentimento. Algo aconteceria naquela mesma noite. Algo contra Joseph. Algum maldito renascido tentaria matá-lo. Ofélia deveria manter-se atenta e protegê-lo a todo custo. Assim que o sol sumisse no horizonte e a escuridão reinasse, esperaria a indesejável visita e a receberia como deveria de ser. Ofélia deitou-se sobre a cama, sem travesseiros, de costas, e seus cabelos lembravam um leque negro aberto. Fechou os olhos. Queria sonhar... Seria capaz de tal ato?
...
No início da noite, as libélulas retornaram à sua dona, obedientes. Ofélia levantou-se, deixando-se envolver pelas criaturinhas que a rodeava. Caminhou para a janela e, sem olhar ou pensar, deixou-se cair. As libélulas, pela vontade de Ofélia, sustentaram-na como se fosse feita de plumas, voando abaixo de seu corpo, levando-a em direção a cidade, enquanto ela observava as nuvens desprendendo-se umas das outras e revelando as primeiras estrelas. Queria ver a Lua.
Seus sapatinhos azuis tocaram o telhado da casa de Joseph. Espiou pela janela do quarto da criança, e viu-o dormindo tranquilamente, ao lado de vários ursos de pelúcia. Queria entrar e abraçá-lo... Ou simplesmente observar aquela paz. Era um anjo pequenino. ‘Não é justo que tenha de sofrer tanto, não é...’.
Um barulho. Alguém ou alguma coisa vinha saltando pelos telhados. Esperaria calma e impassível. O que vinha pulou a alguns poucos metros atrás de Ofélia. Virou-se. Erguia-se a sua frente uma mulher ruiva, com aquele tom alaranjado e brilhante nos cabelos. Pequenas sardas no rosto. Os olhos brilhavam verdes e ameaçadores. Lábios rubros, caninos afiados. Apertava a cintura com um espartilho vermelho e usava por baixo uma camisa branca estilo cigana, com uma calça preta e botas vermelhas com amarrações. A criatura rosnou.
- Flannait – disse Ofélia, sem demonstrar surpresa.
- Ofélia – grunhiu a recém-chegada. – Ériko não mentiu sobre sua beleza – sorriu desdenhosa – nem sobre sua tolice de ver enfrentar-me.
Ofélia não demonstrou qualquer reação. Era exatamente assim: livre de emoções. Ou pelo menos de boas emoções... As libélulas rodeavam a sua senhora, lentamente, e quando apenas uma delas aproximou-se de Flannait, a vampira num rápido movimento, cortou a criaturinha ao meio com as unhas afiadíssimas. As duas pequeninas metades caíram no chão, com seu brilho azul esvaindo-se lentamente. Ela caminhou decidida em direção a Ofélia,com o salto de suas botas batendo fortes e sonoros contra a laje.
- Não há problema algum em matá-la primeiro, sua aberração, contudo, parece-me muito mais divertido matar o garotinho enquanto você assiste. O que acha, meretriz? – Flannait riu escandalosamente, expondo caninos branquíssimos e longos. Estava cada vez mais próxima de Ofélia.
As nuvens afastaram-se da Lua. Brilhante e magnífica, testemunhava o confronto entre dois monstros em forma de belas mulheres. Viu quando a alta ruiva parou de caminhar, a alguns centímetros de sua adversária, fitando-a com olhos famintos.
- Não dirá nada, agora que esta prestes a morrer? – provocou a vampira.
- Morrer? – perguntou Ofélia, sem alterar sua expressão – Apenas vivos podem morrer. Eu não estou viva. Tão pouco estou morta. Eu apenas existo e existo para proteger a criança até que tenha idade para despertar e decidir o que será de mim. –seus olhos brilharam azuis em resposta ao verde que cintilava nos olhos da vampira – Se minha existência findará ou não, não cabe a você decidir.
Flannait grunhiu alto e ameaçadoramente. Com agilidade sobrenatural, ela avançou sobre Ofélia, fazendo-a cair do alto da laje e bater de costas com o gramado no quintal da casa. Mantendo-se sobre a adversária, causou-lhe profundos cortes no peito e pescoço com as unhas, por fim, ergueu-a e lançou-a, fazendo-a bater contra o tronco de uma árvore.Ofélia caiu com o rosto no chão, enquanto Flannait ria satisfeita.
As luzes da casa começaram a acender-se.
- Sei que agüenta bem mais que isso, Ofélia! – disse a vampira – Trarei seu protegido para destruí-lo na sua frente... Posso até arrancar-lhe o coração, já que é só o que você quer.
A enorme porta da frente abriu-se, revelando um homem de certa idade e boa aparência, apontando uma espingarda para a mulher de cabelos sangrentos que se virou para ele. Um jovem de uns quatorze anos segurava um pedaço grande de madeira. Assustado, fitando os dois olhos de verde sobrenatural da mulher, atirou. Ágil, Flannait avançou sobre o mais velho, e com um único e certeiro golpe, cortou-lhe a garganta com as unhas, deixando o liquido precioso escorrer. O mais jovem não tempo sequer de gritar, pois no segundo seguinte, a vampira estava agarrada ao seu pescoço, sugando-lhe a vida. Quando sentiu-se satisfeita, o garota ainda se debatia, o que a incomodou. Quebrou-lhe o pescoço com as mãos.
Mas distraída como estava, a renascida não viu o que acontecia a alguns metros atrás de si. Ofélia levantava-se, assemelhando-se a um fantasma, branca, sem expressão, ensangüentada. Tocou com a palma da mão esquerda a árvores atrás de si. Lentamente, as raízes do carvalho saíram do chão e rastejaram como serpentes silenciosas até Flannait, que se dirigia para o interior da casa...
Uma mulher gritou de uma das altas janelas na parte superior da casa, diante da cena que se desenrolava. Dois dos ramos das raízes prenderam os tornozelos da vampira, imobilizando-a. Outros três atravessaram-lhe as costas, fazendo-a gritar e cuspir sangue. Enroscando-se ainda mais em seu corpo ferido, as raízes puxaram-na para trás, mantendo-a presa de costas para o chão, imóvel. Todo o sangue que ela havia ingerido esvaia-se. Flannait desesperou-se, tentando inutilmente libertar-se. Oféia caminha a passos lentos de seu vitima. Um sorriso sádico deslizou em seus lábios rubros manchados com seu próprio sangue. Queria divertir-se.
Ajoelhou-se ao lado da vampira. A criatura grunhia de ódio e dor, expondo os caninos como ameaça. Ofélia olhou-a nos olhos: aquele verde era tão fascinante quanto seu azul.
- Gosto dos seus olhos. – disse Ofélia. Outra raiz rastejou até a renascida e prendou sua cabeça firmemente contra o chão. Flannait estava apavorada. As libélulas azuis voaram sobre as duas, acompanhando o próximo ato de sua senhora. Suas mãos acariciaram o rosto da vampira e seus dedos pousaram próximos aos olhos dela. Próximos demais. Devagar, suas unhas perfuraram-lhe logo abaixo do globo ocular, penetrando, encaixando-se e agarrando-o. Flannait gritou, um grito horroroso e assustador que cortou a noite. Ofélia então, puxou-os para fora, como faria a um coração. Cortou o nervo óptico com uma de suas unhas. A renascida gritou ainda mais alto, o que fez com que Ofélia lhe desferisse um tapa no rosto.
-Cale-se! –ordenou – Não quero que Joseph ouça nem veja isto!
A vampira derrotada e humilhada choramingava, com as pálpebras fundas onde deveria haver duas belas e ameaçadoras esmeraldas brilhantes. Ofélia admirou os dois globos oculares em sua mão e então os guardou em um pequeno e discreto bolso do vestido, como se fossem dois brinquedinhos que achara e queria certificar-se de que não os perderia. Levantou-se.
A mulher que antes gritara da janela, correra para esconder-se e, provavelmente, certificar-se onde estaria seu filho de cinco anos. Ofélia ordenou, sem nada dizer, que cinco libélulas permanecessem de vigília, como sempre. As outras, a levariam para a casa. Lançou um ultimo olhar para Flannait...
- Não quero morrer, não quero... – e chorava.
- Você já está morta, ignorante. – disse-lhe Ofélia secamente.
Joseph perdera seu pai e um empregado da família. Sua mãe ainda estava viva. Ele próprio estava vivo e, Ofélia esperava, alheio a real causa dessas mortes. Contudo, ela tinha certeza de que tentariam novamente. Ériko estava determinado a destruir seus planos, ela tinha certeza. Ótimo. Que ele próprio a encontrasse e ela não se daria ao trabalho de caçá-lo. Se o matasse, poderia recuperar seu coração. Levou uma das mãos ao peito ao imaginar a possibilidade. As libélulas ergueram-na, voando abaixo de seu corpo, rumo ao céu que lentamente clareava. Jogou os braços para trás, livre, sentindo o vento, admirando o contraste de cores que a aurora trazia. Quanto a Flannait, o sol faria o resto.
Queria lavar-se. O sangue seco começou a incomodá-la.

3 comentários:

  1. Pq Ériko quér tanto arruinar o plano de ofélia ? :/ Gostei da parte em que a ofélia, encosta a mão na arvore e as raizes pega a vampira *-* ,
    Imaginei como foi a luta D:,(me lembro um poco hellsing AOEHOHE),esperava que ofélia arrancasse a cabeça dela *--*.
    Cada parte,uma nova emoção
    te amo amor ♥
    continua assim,^---^ hug/ hug1hug2hug3hug4hug5hug6 ♥

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  2. "Jogou os braços para trás, livre, sentindo o vento, admirando o contraste de cores que a aurora trazia." Faz tempo que não faço isso..gostei muito do texto (:

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  3. Lindo como os outros contos ^^
    Realmente merece reconhecimento ^^

    continue assim moça =D

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