terça-feira, 31 de agosto de 2010

'Ofélia, a Libélula' - Quarto Conto.

Descansou a pena ao lado do tinteiro. Enrolou o pergaminho devagar, selando-o com uma fita azul. Depositou-o em um baú repleto de outros rolos de pergaminho semelhantes a este. Não possuía mais fitas no cabelo, mas quem estivesse pela floresta ‘dela’ avistaria pontos azuis brilhantes, pequenas libélulas aqui e ali. O sol nascia tingindo o céu em tons de rosa e vermelho, descortinando seus raios pelo horizonte, aquecendo a Terra. Afastando as trevas...
E meses se passaram desde o encontro com Flannait. Não havia qualquer sinal de perigo pairando em torno de sua amada criança, Joseph, que seguia a vida com sua mãe viúva. Ofélia preocupava-se: estava calmo demais. Flannait era violenta, teria torturado Joseph. Quem seria o próximo a tentar matá-lo? Ofélia não sabia dizer. Nesses meses que correram, ela dedicava-se a pensar e vigiar seu protegido, mas sempre que um jovem desavisado adentrava a floresta, era dominada por seus instintos, sua punição, encantando e matando o infeliz. Ela desejava permanecer fria em todos os momentos, e não ter chance de lamentar-se. Os olhos azuis miraram o céu que clareava. Era um lindo dia.
Contudo, havia algo mais. Uma presença carregada com alguns sentimentos que ela conhecia atravessava calmamente uma trilha por dentre as árvores em direção á torre solitária. Não, não era um coração a ser roubado. Era totalmente diferente. Sem conter sua curiosidade, todas as libélulas voaram na mesma direção, indo de encontro àquela aura que seguia determinada pela estreita trilha até o coração da floresta, onde erguia-se solitária a torre de pedra. Ofélia saltou da torre pela janela, os cabelos longuíssimos esvoaçando tal como seu vestido, e caiu em pé sem fazer som algum. Correu, de maneira extremamente ágil, atrás de suas libélulas menores, enquanto a maior permanecia como a fita azul presa aos cachos negros de Ofélia.
Parou em quanto as libélulas reuniam-se para voar a sua volta.
O estranho de capuz parou também. Silêncio.
O tempo pareceu congelar. Não ouvia-se absolutamente nada. O canto de pássaros, o farfalhar das folhas, nada. Não era possível ver o rosto do invasor, que trajava um longo manto e capuz de veludo negro, cobrindo-lhe o rosto.
- Tire o capuz. – ordenou Ofélia, sem qualquer alteração na voz.
Os braços do desconhecido moveram-se, deixando as longas magas do manto escorregarem revelando mãos pálidas enfeitadas quatro anéis, dois em cada mão: um sol e uma serpente na mãe direita, uma aranha e uma lua crescente na mãe esquerda. As mãos retiraram o capuz, deixando a mostra um rosto feminino que sorria.
- Então eu a encontrei, Ofélia Libélula. – disse a mulher, em tom de satisfação.
Os cabelos dela eram de um tom alaranjado, cortado rente ao rosto, curto, com uma parte um pouco mais longa na frente, e uma franja em V. Olhos extremamente negros, carregados de mistério. Sobrancelhas bem definidas, olhar sereno, rosto belo. Ofélia estava encantada com a beleza da mulher, mas não demonstrava qualquer emoção.
- Qual teu nome? – perguntou Ofélia, protegida por suas libélulas azuis.
- Chamo-me Charllotte Cotter, minha senhora. –ajoelhou-se em total submissão – Peço que escute o que tenho a lhe dizer, Ofélia.
Que seja. Ofélia caminhou até a mulher, que permanecia sorrindo, olhando para o chão. As libélulas voaram em diferentes direções, deixando sua dona exposta. Curvou-se até Charllotte, tocando-lhe o queixo – Olhe para mim – ordenou Ofélia. Seus olhos brilharam de um intenso azul e tudo o que Charllotte viu foi o brilho pavoroso dos olhos dela, o sorriso malicioso em lábios pintados em sangue, rubros, e caninos afiados deslizarem a mostra. Escuridão, todo o resto mergulhado em trevas. Deixou-se levar, caindo no sono.
Acordou em uma cama confortável, bem arrumada com travesseiros e lençóis brancos e azuis. Sentou-se. Viu Ofélia de costas, olhando pela alta janela. O perfume de rosas era maravilhoso, contudo, não se assemelhava a nenhuma das rosas que conhecia. Deixou seus olhos passearem pelo cômodo, encontrando várias rosas azuis que cresciam em trepadeiras em algumas das paredes do ambiente. Era muito bonito. Levantou-se da cama, caminhando até Ofélia, parando a poucos passos dela. A dama na janela virou-se para a ruiva, que mantinha o sorriso nos lábios.
- Não há maldade em você para me atingir. – disse Ofélia, quebrando o silêncio – Agora conte-me o que veio fazer aqui.
Charllotte maneou a cabeça concordando.
- Minha senhora Ofélia, ofereço-lhe meus serviços em troca de vingança.
Ofélia pela primeira vez demonstrou algum sentimento à mulher, e foi surpresa.
- Por quê? – perguntou.
- Eu sei tudo sobre você, Ofélia. – disse Charllotte calmamente – Sei até mesmo as coisas que você não sabe sobre si mesma, seu passado e seu futuro, e também – sorriu – seu sobre Ériko.
Ofélia estava perplexa. Charllotte Cotter, vendo o peso de suas palavras, sentiu-se satisfeita: sabia que Ofélia a ouviria até o fim. Prosseguiu:
- A vampira que você matou, minha senhora, era minha irmã. – disse Charllotte, calmamente – Era Flannait Cotter. E agradeço o que fez, pois eu não teria conseguido. – fez uma pausa para observar a Ofélia pasma à sua frente – Vivíamos na vila mais próxima daqui, logo depois da floresta ao sul. Ambas seguíamos a Antiga Religião, que antes era comum a todos e lhes dava liberdade... – Charllotte entristeceu-se com tal pensamento e Ofélia sentiu algo familiar naquele trecho da narrativa, mas permaneceu silenciosa – Éramos ricas, minha senhora, nossos pais nos deixaram muito dinheiro e praticamente governávamos aquela aldeia e posso lhe garantir, minha senhora, nunca abusamos do poder ou tratamos de maneira ofensiva ou indigna alguém mais humilde.
‘Como muitos aldeões tornaram-se adeptos da Nova Religião, minha irmã e eu concordamos em erguer um templo da igreja em nossas terras. Em nossos domínios, todos eram livres para crer no que lhes parecia correto. Não demorou muito para que os servos de Cristo começassem a impor sua crença à força, de início apenas com ameaças sobre inferno e castigos eternos... Mas logo, minha senhora, tornaram-se violentos. As pessoas começaram a matar para decidir qual deus é mais forte, e os cristãos tornaram-se maioria. Eu e minha irmã passamos a sofrer ameaças da Igreja, que crescia e enriquecia com o dizimo cobrado dos fiéis, e através disso passou a controlar a região. Os poucos pagãos que permaneceram na vila foram todos mortos... – Charllote perdeu seu olhar em lembranças que pareciam rasgar-lhe a alma com uma afiada navalha, lentamente – As labaredas iluminavam as noites, os gritos de horror do condenado e os julgamentos dos algozes... Tudo ocorria onde antes dançávamos sob a luz da Lua, a Mãe que todos cultuavam... Mas só havia dor, dor e ódio... – Charllotte começou a chorar, cobrindo o rosto com as mãos, soluçando.
Ofélia não sabia como reagir diante da situação. Permaneceu imóvel, uma estátua de mármore, bela, alva e fria.
Charllotte conteve seus soluços e continuou:
- Flannait e eu fomos perseguidas. Uma noite, durante um ritual de proteção, invadiram nossa casa, vários conhecidos... Seus rostos contorcidos de ódio e repulsa, um desejo de nos matar! Assim que ouvi os gritos na porta da frente, segurei minha irmã e a puxei, contudo ela manteve-se imóvel, segurando seu punhal. Ela gritou para que eu fosse embora, mas não podia deixá-la. Flannait me empurrou com um chute e entendi que era esta sua escolha. Pulei o muro nos fundos de nossa casa e corri para a floresta. Flannait fora pega, torturada e condenada à fogueira para ser purificada. – Charllotte agora parecia extremamente fria – Nos espelhos d’água pude vê-la sofrer todo tipo de atrocidade, desde lesões na carne que iam de feridas cruéis à até àquelas que a penetravam e sugavam-lhe o orgulho e dignidade. Eu a vi sendo tomada pela loucura e...
- Você não fez nada? – Ofélia quebrara seu silencio pela primeira vez desde inicio da narrativa. Charllotte sentiu-se de imediato atingida por tais palavras, mas manteve a calma. Tinha motivos pra ter feito o que fez.
- Eu não podia fazer nada, minha senhora. Não tinha este direito. – respondeu Charllotte, secamente – Você era uma bruxa também, ainda o é. Cada um tem uma missão e há coisas que não podemos mudar. Entenda que nós, filhas Dela, temos o destino de todos em nossas mãos. Contudo, nunca se esqueça de que a vontade dos deuses é maior do que a nossa, portando, o destino que moldamos para cada um é, antes de tudo, a vontade Deles.
- Eu não sou filha de ninguém. – disse Ofélia, ríspida.
Charllotte riu. – Não seja tola, minha senhora. Todas as criaturas existentes, sejam de luz, trevas, de ambos ou de nenhum deles pertencem a algum deus ou deusa. Ora, - intrigou-se – sua memória deve ter sido muito afetada ou não fora bem instruída nos Mistérios! Afinal, você era a Virgem da Primavera, não era, antes dele te pegar...? – questionou.
Charllotte sabia que suas palavras pesavam e muito em Ofélia, que se esquecera da maior parte de sua vida humana. Faria com que Charllotte contasse tudo o que sabia, nem que tivesse de torturá-la.
- Se tudo baseia-se na vontade dos deuses, - começou Ofélia – todas as vidas que tirei até agora, todas as almas presas nesta floresta são também as vontades deles?
- É teu martírio, Ofélia. – disse Charllotte com pesar – Tua punição por tudo o que fizeste. O livre arbítrio que temos nos permite escolher um caminho a seguir. Você escolheu entregar seu coração á um certo alguém. Você escolheu deixar que aquele que mais a amava morresse por ti. Você escolheu deixar que um vilarejo inteiro fosse queimado à sua procura. O que ocorreu a partir de todos os seus erros –as suas punições- são sim a vontade dos deuses. Assim como as, hm, recompensas. Mas as escolhas são apenas suas, não confunda.
- Continue tua história.
- Bem, eu voltei escondida para minha casa e peguei dinheiro, roupas e meus instrumentos – Charllotte riu com tristeza – e fugi para a cidade ao norte daqui. – e apontou uma direção – Prosperei como cartomante, realizando os feitiços para quais era contratada bem como ajudando a administrar a fortuna de muitas famílias nobres que me recorriam. Dois anos se passaram desde que vi Flannait em minhas visões pela ultima vez. Sabia que ela sobrevivera de alguma forma, mas não conseguia encontrá-la: algo a mantinha oculta de minha magia. Acabei por esquecê-la, e casei-me com um nobre que seguia a Antiga Religião secretamente, Lorde Vaughan Ulva. Engravidei.
Charllotte parou de falar. O restante de sua vida não era fácil de lembrar, tão pouco de compartilhar. Inspirou fundo e continuou:
- Não cheguei a ter meu bebê. Uma noite, no sexto mês de gestação, nossa casa foi invadida. Três vampiras montadas em harpias nos pegaram despreparados e entre elas, eu vi minha irmã Flannait. Não preciso descrevê-la, você sabe como ela era. Torturaram meu marido e o mataram, obrigando-me a assistir tais atos. Flannait sorriu satisfeita para mim, dizendo que havia me libertado e que eu poderia juntar-me à Ériko, que ele era o vampiro que superaria os deuses, o mais forte... – Charllotte fitava o chão – Eu me recusei. Espancaram-me e me levaram à força. Devido a força dos golpes que recebi, sofri um aborto. O que aconteceu a partir daí não é nenhuma novidade, minha senhora. – Charllotte sentou-se na única cadeira do cômodo – Tornei-me escrava de Ériko e, como ele sabia de meu repúdio por ele, tornou-me mais uma filha das trevas. – silenciou, deixando finas presas escorregarem por seus lábios e seus globos oculares foram preenchidos de negro, mostrando sua natureza.
- Se és filha de Ériko, por que consegues andar ao sol? – questinou Ofélia, intrigada. – Sequer pude sentir que és uma vampira!
A riuva sorriu, seus olhos voltaram ao normal e suas presas se recolheram – Magia, minha senhora Ofélia. Acima de qualquer outro, minha mãe é Hécate e á Ela sempre fui fiel. Mesmo agora, nestas condições, Ela não me renegou. Continuo à praticar meus rituais, servindo-a. Ela me concede sua benção e, em casos de necessidade extrema, coloco em prática um feitiço que me protege parcialmente dos raios solares por um dia. – Charllotte mexeu em sua capa negra – Parcialmente porque não posso me expor por inteira. Só o usei duas vezes: para fugir da fortaleza de Ériko e, claro, para vir até você, minha senhora. – sorriu.
Ofélia compreendeu o que Charllotte desejava acima de qualquer coisa: vingança. Vingança pela irmã que tornara-se um monstro, pelo marido morto e pelo bebê abortado. Ériko causara tanta desgraça à Cotter quando a ela mesma. Pensou um pouco em todas as vantagens que teria com Charllotte ao seu lado. Tomou uma decisão:
- Selemos um pacto.

'O lamento da Libélula' - Segundo pergaminho.

De volta a pena, tinta e pergaminho. De volta ao meu único ouvinte. Ah, como queria ser aquela desalmada de sempre e não apenas durante meu teatro repetitivo e insano. Mas não posso. E talvez, creio eu, seja este o menor preço que devo pagar. Ver os horrores que vejo, fazer as atrocidades que faço, ser parte dessas aberrações... Enfim, agora dedico-me a proteger a criança imaculada, cuja alma mutilada posso ver cada vez que fecho meus olhos, ah...
Eu conheci Flannait. Não sei ao certo quantas décadas se passaram, mas eu a conheci. Seus olhos verdes sempre foram belos e agora, pendurados cuidadosamente em minha janela, ainda nutrem algo daquele brilho selvagem e maravilhoso da renascida. Ela, caro leitor (se é que estas palavras chegaram a alguém um dia), pôde escolher entre integrar-se à corja de protetoras e meretrizes de Ériko ou permanecer comigo. Bem, não é preciso dizer quem a atraiu mais. Lembro-me de ver Flannait, ferida e debilitada, partir com três renascidas, sem olhar para trás. Mas uma das vampiras olhou e cuspiu no chão próximo a mim, mostrando desprezo. Sem confrontar, apenas me virei e retornei a floresta. A vida, ou mesmo a mera e marginalizada existência é construída ou destruída por escolhas. E até agora, eu apenas destruí.
Eu esperava ver Ériko na noite em que buscaram a escocesa Flannait. Mas ele sabia que eu também queria a garota, e permaneceu escondido com o rabo entre as pernas. Ériko me teme. Ele apavora-se apenas em ouvir meu nome. Tem medo do monstro de criou. Ele permanece oculto por feitiços, contudo, por vezes posso vê-lo. Pouco, mas vejo. Por que prolongar por mais séculos sua existência, Ériko, se és tão covarde?
Enfim, agora me resta observar Joseph, que de nada sabe. Estranho saber que a mesma lua cheia que paira sobre minha torre paira sobre a janela de meu anjo, em um mundo tão diferente deste meu. Sem muitas das memórias de minha vida humana antes de envolver-me com Ériko, não posso sequer dar-me ao luxo de chorar pelo passado. Seguir em frente, libertar de uma vez as almas envolvidas nesta trama, que eu sem consciência de meus atos, teci cuidadosamente como uma teia. Uma teia cármica.

terça-feira, 3 de agosto de 2010

'Ofélia, a Libélula' - Terceiro Conto.

A fina garoa descia lentamente do céu enegrecido, fria, formando uma cortina acinzentada sobre a vasta floresta e a cidade longínqua. Frio. Ofélia não sentia frio, nem calor. Permanecia sentada na janela observando a garoa. A única fita em seus cabelos era aquela mais brilhante e de intenso azul: todas as outras fitas eram as libélulas azuis pequeninas que rodeavam uma casa específica naquela tal cidade distante, observando o pequeno Joseph. Assim, Ofélia podia acompanhar seu crescimento, sua personalidade, seu amor se desenvolvendo de perto, mesmo estando tão longe.
Joseph crescia conforme os anos transcorriam depressa e mutáveis para os humanos, que envelhecem a cada dia; lentos e imutáveis para Ofélia que permanece, constante, eterna. O menino, então com cinco anos, já apresentava características físicas e psicológicas referentes à sua vida passada. Ele possuía um grande fascínio por libélulas e sua família achava curioso e ao mesmo tempo encantador aqueles pequeninos dragões alados rodeando-o, como se brincassem com ele. Tinha os mesmos cabelos castanhos e ondulados, os mesmos olhos cor de mel e um rosto triangular e afeminado começava a ser desenhado. Era lindo, como um querubim deveria ser.
Ofélia sentia-se em paz ao vê-lo tão puro e alheio à sua crueldade e ao destino sombrio que o aguarda, brincando alegre na beira do lago na propriedade da família. Ela estava sempre presente. Contudo, sua busca por um coração não findou: se encontrasse um, ela e Joseph ver-se-iam livres de todo aquele pesadelo, e todas as mil almas a lamentar-se pela floresta encontrariam a paz e o descanso. Se encontrasse.
 Então teve um pressentimento. Algo aconteceria naquela mesma noite. Algo contra Joseph. Algum maldito renascido tentaria matá-lo. Ofélia deveria manter-se atenta e protegê-lo a todo custo. Assim que o sol sumisse no horizonte e a escuridão reinasse, esperaria a indesejável visita e a receberia como deveria de ser. Ofélia deitou-se sobre a cama, sem travesseiros, de costas, e seus cabelos lembravam um leque negro aberto. Fechou os olhos. Queria sonhar... Seria capaz de tal ato?
...
No início da noite, as libélulas retornaram à sua dona, obedientes. Ofélia levantou-se, deixando-se envolver pelas criaturinhas que a rodeava. Caminhou para a janela e, sem olhar ou pensar, deixou-se cair. As libélulas, pela vontade de Ofélia, sustentaram-na como se fosse feita de plumas, voando abaixo de seu corpo, levando-a em direção a cidade, enquanto ela observava as nuvens desprendendo-se umas das outras e revelando as primeiras estrelas. Queria ver a Lua.
Seus sapatinhos azuis tocaram o telhado da casa de Joseph. Espiou pela janela do quarto da criança, e viu-o dormindo tranquilamente, ao lado de vários ursos de pelúcia. Queria entrar e abraçá-lo... Ou simplesmente observar aquela paz. Era um anjo pequenino. ‘Não é justo que tenha de sofrer tanto, não é...’.
Um barulho. Alguém ou alguma coisa vinha saltando pelos telhados. Esperaria calma e impassível. O que vinha pulou a alguns poucos metros atrás de Ofélia. Virou-se. Erguia-se a sua frente uma mulher ruiva, com aquele tom alaranjado e brilhante nos cabelos. Pequenas sardas no rosto. Os olhos brilhavam verdes e ameaçadores. Lábios rubros, caninos afiados. Apertava a cintura com um espartilho vermelho e usava por baixo uma camisa branca estilo cigana, com uma calça preta e botas vermelhas com amarrações. A criatura rosnou.
- Flannait – disse Ofélia, sem demonstrar surpresa.
- Ofélia – grunhiu a recém-chegada. – Ériko não mentiu sobre sua beleza – sorriu desdenhosa – nem sobre sua tolice de ver enfrentar-me.
Ofélia não demonstrou qualquer reação. Era exatamente assim: livre de emoções. Ou pelo menos de boas emoções... As libélulas rodeavam a sua senhora, lentamente, e quando apenas uma delas aproximou-se de Flannait, a vampira num rápido movimento, cortou a criaturinha ao meio com as unhas afiadíssimas. As duas pequeninas metades caíram no chão, com seu brilho azul esvaindo-se lentamente. Ela caminhou decidida em direção a Ofélia,com o salto de suas botas batendo fortes e sonoros contra a laje.
- Não há problema algum em matá-la primeiro, sua aberração, contudo, parece-me muito mais divertido matar o garotinho enquanto você assiste. O que acha, meretriz? – Flannait riu escandalosamente, expondo caninos branquíssimos e longos. Estava cada vez mais próxima de Ofélia.
As nuvens afastaram-se da Lua. Brilhante e magnífica, testemunhava o confronto entre dois monstros em forma de belas mulheres. Viu quando a alta ruiva parou de caminhar, a alguns centímetros de sua adversária, fitando-a com olhos famintos.
- Não dirá nada, agora que esta prestes a morrer? – provocou a vampira.
- Morrer? – perguntou Ofélia, sem alterar sua expressão – Apenas vivos podem morrer. Eu não estou viva. Tão pouco estou morta. Eu apenas existo e existo para proteger a criança até que tenha idade para despertar e decidir o que será de mim. –seus olhos brilharam azuis em resposta ao verde que cintilava nos olhos da vampira – Se minha existência findará ou não, não cabe a você decidir.
Flannait grunhiu alto e ameaçadoramente. Com agilidade sobrenatural, ela avançou sobre Ofélia, fazendo-a cair do alto da laje e bater de costas com o gramado no quintal da casa. Mantendo-se sobre a adversária, causou-lhe profundos cortes no peito e pescoço com as unhas, por fim, ergueu-a e lançou-a, fazendo-a bater contra o tronco de uma árvore.Ofélia caiu com o rosto no chão, enquanto Flannait ria satisfeita.
As luzes da casa começaram a acender-se.
- Sei que agüenta bem mais que isso, Ofélia! – disse a vampira – Trarei seu protegido para destruí-lo na sua frente... Posso até arrancar-lhe o coração, já que é só o que você quer.
A enorme porta da frente abriu-se, revelando um homem de certa idade e boa aparência, apontando uma espingarda para a mulher de cabelos sangrentos que se virou para ele. Um jovem de uns quatorze anos segurava um pedaço grande de madeira. Assustado, fitando os dois olhos de verde sobrenatural da mulher, atirou. Ágil, Flannait avançou sobre o mais velho, e com um único e certeiro golpe, cortou-lhe a garganta com as unhas, deixando o liquido precioso escorrer. O mais jovem não tempo sequer de gritar, pois no segundo seguinte, a vampira estava agarrada ao seu pescoço, sugando-lhe a vida. Quando sentiu-se satisfeita, o garota ainda se debatia, o que a incomodou. Quebrou-lhe o pescoço com as mãos.
Mas distraída como estava, a renascida não viu o que acontecia a alguns metros atrás de si. Ofélia levantava-se, assemelhando-se a um fantasma, branca, sem expressão, ensangüentada. Tocou com a palma da mão esquerda a árvores atrás de si. Lentamente, as raízes do carvalho saíram do chão e rastejaram como serpentes silenciosas até Flannait, que se dirigia para o interior da casa...
Uma mulher gritou de uma das altas janelas na parte superior da casa, diante da cena que se desenrolava. Dois dos ramos das raízes prenderam os tornozelos da vampira, imobilizando-a. Outros três atravessaram-lhe as costas, fazendo-a gritar e cuspir sangue. Enroscando-se ainda mais em seu corpo ferido, as raízes puxaram-na para trás, mantendo-a presa de costas para o chão, imóvel. Todo o sangue que ela havia ingerido esvaia-se. Flannait desesperou-se, tentando inutilmente libertar-se. Oféia caminha a passos lentos de seu vitima. Um sorriso sádico deslizou em seus lábios rubros manchados com seu próprio sangue. Queria divertir-se.
Ajoelhou-se ao lado da vampira. A criatura grunhia de ódio e dor, expondo os caninos como ameaça. Ofélia olhou-a nos olhos: aquele verde era tão fascinante quanto seu azul.
- Gosto dos seus olhos. – disse Ofélia. Outra raiz rastejou até a renascida e prendou sua cabeça firmemente contra o chão. Flannait estava apavorada. As libélulas azuis voaram sobre as duas, acompanhando o próximo ato de sua senhora. Suas mãos acariciaram o rosto da vampira e seus dedos pousaram próximos aos olhos dela. Próximos demais. Devagar, suas unhas perfuraram-lhe logo abaixo do globo ocular, penetrando, encaixando-se e agarrando-o. Flannait gritou, um grito horroroso e assustador que cortou a noite. Ofélia então, puxou-os para fora, como faria a um coração. Cortou o nervo óptico com uma de suas unhas. A renascida gritou ainda mais alto, o que fez com que Ofélia lhe desferisse um tapa no rosto.
-Cale-se! –ordenou – Não quero que Joseph ouça nem veja isto!
A vampira derrotada e humilhada choramingava, com as pálpebras fundas onde deveria haver duas belas e ameaçadoras esmeraldas brilhantes. Ofélia admirou os dois globos oculares em sua mão e então os guardou em um pequeno e discreto bolso do vestido, como se fossem dois brinquedinhos que achara e queria certificar-se de que não os perderia. Levantou-se.
A mulher que antes gritara da janela, correra para esconder-se e, provavelmente, certificar-se onde estaria seu filho de cinco anos. Ofélia ordenou, sem nada dizer, que cinco libélulas permanecessem de vigília, como sempre. As outras, a levariam para a casa. Lançou um ultimo olhar para Flannait...
- Não quero morrer, não quero... – e chorava.
- Você já está morta, ignorante. – disse-lhe Ofélia secamente.
Joseph perdera seu pai e um empregado da família. Sua mãe ainda estava viva. Ele próprio estava vivo e, Ofélia esperava, alheio a real causa dessas mortes. Contudo, ela tinha certeza de que tentariam novamente. Ériko estava determinado a destruir seus planos, ela tinha certeza. Ótimo. Que ele próprio a encontrasse e ela não se daria ao trabalho de caçá-lo. Se o matasse, poderia recuperar seu coração. Levou uma das mãos ao peito ao imaginar a possibilidade. As libélulas ergueram-na, voando abaixo de seu corpo, rumo ao céu que lentamente clareava. Jogou os braços para trás, livre, sentindo o vento, admirando o contraste de cores que a aurora trazia. Quanto a Flannait, o sol faria o resto.
Queria lavar-se. O sangue seco começou a incomodá-la.