segunda-feira, 26 de julho de 2010

'Ofélia, a Libélula' - Segundo Conto.

Ofélia deixou cair o que restou do coração da última vítima. Estava nua e suja de sangue, fitando o nada com olhos vazios. Jogou-se sobre a cama, fechando os olhos, e permaneceu imóvel. Sentia sua cicatriz vez ou outra pulsar e expelir pequenas quantidades de sangue, tentando livrar-se de qualquer vestígio do coração inadequado. A sensação do líquido rubro e pegajoso na pele passou a incomodá-la. Queria lavar-se. E da maneira como estava, suja e nua, desceu as escadas de pedra, pisando em flores e folhas, e alcançou a relva úmida e a noite enluarada.
Olhou, admirada, a lua cheia que dominava os céus, reinando soberana noite adentro. Quantas vezes, em uma vida distante e feliz, já não dançara sob os raios desta mesma lua? Lembrou-se da sensação mística de deixar-se guiar pelo som da harpa e de tambores. Novamente fechou os olhos, tentando recordar-se ainda mais da vida que tivera... E então quase podia sentir a coroa de flores pequeninas enfeitando sua cabeça e o belo vestido verde a cobrir seu corpo; os trajes da Noiva da Primavera. Viu camponeses alegres sorrindo e acenando-lhe, pois ela, a Noiva, traria a todos uma boa colheita... Qual era o nome da Deusa que adorara?
Mas que importância algo assim teria agora?
Ofélia seguiu por dentre as árvores, ouvindo os animais e sentindo a presença de cada um. Viu algumas das almas perdidas chorando, mas não deu importância; prosseguiu dançando indiferente à dor daqueles infelizes. Chegou então a um lago no qual a lua refletia. Folhas e flores das árvores decoravam a superfície aqui e ali, bem como algumas pedras. O coaxar de sapos a fez esboçar um sorriso satisfeito. Um leve aceno de cabeça, quase imperceptível, fez com que as libélulas a sua volta se dispersassem, voando em direções diferentes. Caminhou até a margem e entrou nas águas geladas, até os quadris e então mergulhou. Emergiu e submergiu diversas vezes, levou seu corpo removendo o sangue com as mãos. Quando sentiu-se limpa, retornou a margem e sentou-se sobre a grama, com o olhar perdido sobre a superfície iluminada da água.
Foi quando ouviu, não com os ouvidos, mas com a mente, o grito de uma mulher; O grito de uma mulher em trabalho de parto. Olhou a libélula maior do outro lado do lago, que pareceu compreender. Então a estranha criatura voou, rápido demais para uma libélula comum, indo até a mulher que tornava-se mãe. Ofélia via através da libélula o que acontecia: Dentro do pequeno quarto, uma mulher sangrava e gritava na cama, enquanto outras corriam com baldes de água quente e lençóis, alguns limpos, outros ensopados de sangue. Foi quando os gritos cessaram e o choro de um recém nascido invadiu o cômodo. A mãe da criança, suada, respirou aliviada por livrar-se da dor, olhando satisfeita o bebê que a parteira lhe mostrava. “Mais um menino, senhora” disse a parteira, “Que nome dará a ele?”. A mãe, cansada pelo parto, murmurou “Joseph” e estendeu os braços para aconchegar seu segundo filho e dar-lhe de mamar.
Muito distante dali, Ofélia permanecia imóvel, extremamente surpresa, em um misto de euforia e pavor. Então ele reencarnou. Aquela pequena criança era o homem que séculos antes morreu tentando protegê-la. Aquele bebê não fazia idéia de quão maculada sua alma estava por culpa de Ofélia... Ele sequer a conhecia. Sentiu uma enorme agonia ao pensar que aquela criança que acabara de nascer, pura, inocente das maldades e da sujeira desse mundo, tivesse de sofrer tanto por um erro tão antigo. Por seu carma. “Por minha culpa...”.
Era impossível impedir. Ofélia decidiu observar a criança crescer e teve a certeza de que algo terrível o traria até ela; apenas não sabia o que. E quando ele viesse, dar-lhe-ia a chance de vingar-se por todo o mal que ela lhe causara ou de perdoá-la. Esperaria mais vinte, vinte e cinco anos, o que fosse, afinal, já esperara dois séculos. Ela, que traçara o destino dos que caiam em sua teia, deixaria que no tempo certo, seu destino fosse traçado por outra pessoa.
Por aquele que agora chama-se Joseph.

4 comentários:

  1. adorei, *-* de coração mesmo e queremos ver a ofelia feliz ^-----^

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  2. Li os dois contos e o lamento da Ofélia. Apenas uma palavra: maravilhoso.
    Quero saber o q ela irá fazer com Joseph...

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  3. Nossa adorei mesmo! estou ansiosa para saber se Ofélia vai conseguir um coração... *___*

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  4. A historia tá linda *-*.... quero continuação *-*

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